A prática de agências policiais americanas revenderem suas armas usadas tem gerado um intenso debate nos Estados Unidos, especialmente após uma investigação jornalística revelar que mais de 52 mil dessas armas foram encontradas em cenas de crimes entre 2006 e 2022. A investigação, realizada em conjunto por The Trace, CBS News e Reveal, mostrou que muitas dessas armas, originalmente destinadas à proteção da comunidade, acabaram sendo utilizadas em roubos, violência doméstica, homicídios e outros delitos.
Diante desse cenário, o Bureau de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos (ATF) emitiu um alerta às agências policiais, desencorajando a revenda de armas devido à alta frequência com que são encontradas em crimes violentos.
A investigação e o alerta do ATF levaram diversas agências a reavaliar suas políticas. The Trace e CBS News contataram 60 agências com histórico de revenda, e das 21 que responderam, quatro confirmaram o fim da prática: os departamentos de polícia de Cincinnati, Columbus e Sacramento, e o Gabinete do Xerife do Condado de Monmouth (NJ). Outras sete agências anunciaram que revisarão suas políticas. As polícias de Indianápolis e Minneapolis já haviam suspendido as revendas após a publicação inicial da investigação.
A principal justificativa para a revenda é econômica. As lojas de armas oferecem um valor de troca pelas armas usadas, o que permite às agências policiais reduzir os custos de aquisição de novos equipamentos. Ao abrir mão dessa prática, as agências não apenas perdem o valor da troca, mas também precisam arcar com os custos da destruição das armas antigas.
Essa questão orçamentária foi citada por várias agências como motivo para continuar revendendo. O chefe de polícia de Quincy (MA), Mark Kennedy, expressou preocupação com o destino das armas, mas afirmou que seu departamento não tem recursos para mudar a política. Em Kentucky, a situação é ainda mais complexa, pois uma lei estadual obriga as agências a venderem as armas que não utilizam mais.
Contudo, pesquisadores argumentam que, embora a revenda gere economia a curto prazo, os custos da violência relacionada a essas armas para a sociedade são muito maiores. Um estudo estimou o custo de um único homicídio em mais de US$ 17 milhões, considerando gastos com emergência, investigação, perda de receita tributária e encarceramento.
O ex-agente especial do ATF, Scot Thomasson, critica a falta de transparência no processo de revenda, muitas vezes realizado sem a aprovação explícita das autoridades eleitas, deixando os contribuintes sem saber que as armas que financiaram podem acabar nas mãos de criminosos.
O ATF identificou mais de 1.000 armas anteriormente policiais recuperadas em homicídios e outras 2.000 confiscadas de criminosos condenados entre 2019 e 2023, reforçando a preocupação com a prática. Uma resolução de 1998 da Associação Internacional de Chefes de Polícia (IACP) já instruía as agências a não revenderem armas, mas a resolução expirou e, segundo William Brooks, ex-chefe de polícia e atual chefe do comitê de armas de fogo da IACP, é improvável que seja revivida.
Brooks defende que a decisão de revender ou não deve ser das agências, caso os governos municipais não financiem integralmente a compra de novas armas. Ele argumenta que a destruição das armas policiais usadas não impediria a violência, dada a ampla disponibilidade de armas de fogo nos EUA.
Michael Sierra-Arévalo, professor de sociologia da Universidade do Texas, contrapõe esse argumento, afirmando que o Estado tem a responsabilidade de ser cauteloso e que a falta de provas empíricas de que a mudança de política evitaria mortes não justifica o risco. “Sabemos que pessoas são mortas com essas armas. Isso deveria ser suficiente”, conclui.
A questão da revenda de armas por policiais nos EUA, portanto, envolve um complexo debate entre questões orçamentárias, segurança pública, transparência e responsabilidade do Estado, com implicações diretas para a vida dos cidadãos.
Foto: CBS News